Matérias EspeciaisProdução CinemaSlideshow— 24 junho 2015
A coletividade, essencial à realização cinematográfica, ganhou novos contornos com a ascensão das tecnologias digitais e a necessidade de pequenos grupos independentes se adequarem a trâmites burocráticos ou mesmo driblá-los, em casos de produções fora dos esquemas institucionalizados de incentivo e patrocínio à produção audiovisual no país. Nos últimos 15 anos, a palavra “coletivo” foi permanentemente integrada ao vocabulário da área e libertou dezenas de realizadores a voos de criatividade e liberdade como não se via desde o início da Retomada, em meados dos anos 1990. O conceito foi se aprimorando na medida em que os próprios grupos se viam transformados, efetivamente, em produtoras. O símbolo da transição é o registro de empresa e pessoa jurídica, representado pelo CNPJ.
Os primeiros passos
Isso não faz com que coletivos formados em fundos de garagem ou quintais de casa percam a individualidade e a camaradagem entre seus membros. Muito pelo contrário: a “burocratização”, às vezes, potencializa os laços entre os integrantes. O caso da produtora Filmes de Plástico, hoje sediada em Belo Horizonte (MG), é exemplar nesse sentido. A coincidência dos sobrenomes de dois sócios, Gabriel Martins e Maurílio Martins, foi apenas o primeiro passo de aproximação, lá no começo de tudo, quando ambos se conheceram num curso superior de cinema na capital mineira, em 2006. Conversa aqui e ali, os dois se identificaram pelas origens humildes e por serem moradores da mesma cidade – Contagem, município conhecido pela presença de grandes indústrias e fábricas na Região Metropolitana de BH.
As afinidades foram surgindo naturalmente. “Desde os primeiros encontros, eu e o Gabriel já sonhávamos em um dia termos uma produtora para fazer nossos filmes”, conta Maurílio. Em 2009, veio a primeira parceria de trabalho, no curta-metragem “Filme de Sábado”. Na equipe, estavam os outros dois futuros integrantes da Filmes de Plástico: André Novais Oliveira, no som (e também morador de Contagem), e Thiago Macêdo Corrêa (único belo-horizontino de fato do quarteto), na direção de produção. Em cena, a baleia de plástico que, no futuro, tornou-se símbolo e logomarca do grupo. “A gente sempre se reunia levando tudo muito a sério e acreditando que o trabalho do grupo era maior do que os projetos individuais.”
O ponto de virada da até então informal Filmes de Plástico se deu em janeiro de 2010, quando o curta “Fantasmas”, assinado por André Novais, foi exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes. O filme foi coqueluche no festival e chamou atenção para aquele pequeno coletivo de mineiros. “Acompanhávamos outros grupos surgindo, como o Filmes do Caixote (SP), Alumbramento (CE) e a Teia (MG). Também queríamos fazer algo assim, do nosso modo e com a nossa identidade”, relembra Maurílio. No mesmo ano, ele e Gabriel levaram o troféu de melhor direção no Festival de Brasília com o curta “Contagem”, projeto de conclusão do curso de cinema e realizado com apenas R$ 2.000,00.
Trio por alguns anos, a Filme de Plástico se formou e se organizou em definitivo com a entrada de Thiago Macêdo, em 2012. Hoje, possui sede própria numa simpática casa no bairro Prado, em BH, onde centralizam reuniões, projetos, decisões e trabalhos. Filmes sempre muito elogiados têm vindo um atrás do outro, com inserções em grandes festivais internacionais, casos dos curtas “Pouco Mais de um Mês” (2013), de André Novais, premiado com menção honrosa na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e “Quinze”, de Maurílio, selecionado para várias mostras; e do longa “Ela Volta na Quinta”, de André, apresentado no FID-Marseille, na França, e no Festival de Brasília, em 2014. O mais recente curta da equipe, “Quintal”, assinado por André, levou a turma novamente a Cannes em maio de 2015. “Sobreviver individualmente no cinema é muito difícil, por isso ter um grupo que amplifica as suas ideias é fundamental”, reforça Maurílio.
Laços de amizade
No caso da Símio Filmes, coletivo formado em Recife (PE), a formalização como produtora, por volta de 2008, foi apenas em termos burocráticos. “Nossa organização continua tão mambembe quanto era na época da faculdade, quando nos conhecemos”, conta Marcelo Pedroso, um dos atuais três integrantes do grupo – os outros dois são Juliano Dornelles e Daniel Bandeira. Um quarto membro, Gabriel Mascaro, esteve junto com eles até 2012, quando se desligou para fundar outra produtora. “Há nossa ‘pessoa jurídica’ que responde pelos filmes, mas continuamos sem sede própria. Na verdade, temos uma sede ‘itinerante’, na casa ou na garagem de alguém. Mantemos os aspectos formais para pleitear financiamentos ou algum arranjo para a produção de filmes, enquanto, entre nós, seguimos num hibridismo mutante que se reconfigura ao seu jeito a cada novo trabalho”.
Assim como a Filmes de Plástico, a Símio brotou em épocas de faculdade, a partir de encontros no Centro de Comunicação e Artes da UFPE, no começo dos anos 2000, quando chegou a ter, informalmente, uma dezena de integrantes. “Teve uma ocasião em que a turma dormiu na minha casa para irmos de madrugada filmar um curta do Daniel, “O Lobo do Homem”, lá na universidade. Aproveitamos e fizemos outros pequenos trabalhos, tudo na fuleragem mesmo. Foi quando a gente pensou: ‘temos algo aqui, nisso de trabalhar juntos’”, relembra Pedroso.
Com cada antigo membro seguindo outros rumos, o coletivo enfim se fixou com Pedroso, Dornelles, Bandeira e Mascaro. Juntos, realizaram vários filmes de boa circulação em festivais, o primeiro sendo o longa “Amigos de Risco” (2007), de Daniel Bandeira, que competiu no Festival de Brasília ao lado de nomes de peso como Julio Bressane e Carlos Reichenbach. Outros títulos se seguiram nos anos posteriores, muitos até hoje presentes em rodas de discussão e polêmica, como “Pacific” (2009), de Pedroso, e “Um Lugar ao Sol” (2010), de Mascaro. Em 2014, o mais recente longa do grupo, “Brasil S/A”, de Pedroso, levou troféus de direção, roteiro, trilha sonora, som e montagem no Festival de Brasília.
Sobre a experiência de ter um coletivo/produtora como a Símio, Pedroso é direto: “É instável, inconsequente e apaixonante. São os laços de amizade que permitem as coisas se concretizarem. Precisa também de uma zona de convergência em que sejam reconhecidas as afinidades estéticas e afetivas dos integrantes. Na verdade, a estética até pode ser divergente, mas é importante o diálogo e o interesse em relação aos gestos criativos dos outros, sempre com disposição para escutar as diferenças. A divergência, de fato, tem que ser uma força-motriz para fortalecer o grupo”.
Se firmando como produtora
Se algo difere a trajetória dos integrantes da Alumbramento (CE) de seus colegas Filmes de Plástico e Símio, é apenas numa questão formal: a ambição, desde o princípio, de terem uma produtora de fato e legalizada. “O coletivo surgiu justamente a partir dessa necessidade e da nossa vontade de criarmos uma força maior na cidade de Fortaleza”, relembra Luiz Pretti. Ele e o irmão Ricardo se uniram a um grupo de aproximadamente dez pessoas, que aos poucos foi diminuindo para os atuais seis: Guto Parente, Pedro Diógenes, Ivo Lopes Araújo, Carol Louise e os próprios Luiz e Ricardo.
A fundação da Escola Audiovisual de Fortaleza, em 2006, e os encontros e conversas na Alpendre Casa de Arte, onde um dos fundadores, Alexandre Veras, era figura essencial, foram os núcleos onde brotou o que viria a se tornar a Alumbramento. Trabalho em conjunto foi inevitável, e a primeira oportunidade veio através da iniciativa de Ivo Lopes, hoje um dos diretores de fotografia mais requisitados do cinema brasileiro independente. “Quando estava finalizando o primeiro longa dele, “Sábado à Noite”, em 2006, o Ivo nos procurou, porque queria montar uma produtora que ajudasse a conseguir recursos através de editais de financiamento”, conta Luiz. Naquele mesmo ano, nascia o primeiro filme assinado já como produção Alumbramento: o curta “Às Vezes É Mais Importante Lavar a Pia do que a Louça ou Simplesmente Sabiaguaba”, com direção dos irmãos Pretti.
Em janeiro de 2010, o longa “Estrada para Ythaca” provocou frisson na Mostra de Tiradentes, ganhando o Troféu Barroco dado pelo júri da crítica. Assinado por Irmãos Pretti & Primos Parente, o filme se tornou exemplo de um trabalho coletivo feito sem grandes recursos, equipe reduzida (os diretores eram também os atores) e liberdade irrestrita na realização e na estética. “De alguma forma, ‘Ythaca’ respondeu a alguns anseios e questões que existiam na produção independente, sobre como filmar sem dinheiro, superar o sistema hierarquizado de equipe e vencer o obstáculo da centralização da produção no sudeste brasileiro”, diz Luiz Pretti.
Prestes a completar dez anos, a Alumbramento tem filmografia repleta de realizações bastante notórias, como “Os Monstros” (2011), “Doce Amianto” (2013), “Com os Punhos Cerrados” (2014) e “A Misteriosa Morte de Pérola” (2014). O que os faz continuar e terem engatilhados diversos projetos para os próximos meses é o que Ricardo Pretti chama de “vontade de confirmar a rebeldia e fazer as coisas fora do padrão estabelecido”.
Por Marcelo Miranda
Fonte: Revista de Cinem
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